sexta-feira, abril 30

O azar

sempre foi uma coisa constante na minha vida.
Tão constante que, quando terminei de escrever esse post, o apaguei sem querer e estou escrevendo de novo.
Sério, já criança eu tinha o hábito de pensar que eu não podia ter nada que fosse muito legal e todo mundo tivesse, porque o meu daria um jeito de não funcionar ou vir com defeito.
O meu primeiro banco imobiliário, que esperei meses pra ganhar de aniversário, era pobre: veio só com notas de um real. Imagina quando eu abri a caixa ansiosamente e não tinha nenhuma outra corzinha além de cerca de trezentas notas azuis.
O meu primeiro celular incrível (e, depois disso, o único) com mp3, câmera, colorido estilo morfador dos power rangers, eu acertei um modelo da nokia que teve problema de série e o lote inteiro foi recolhido. O meu, claro, nunca foi ressarcido.
A minha dentista já me esqueceu, duas vezes na sala de espera do consultório, só se lembrando de mim quando saiu da sua sala para ir embora.
E isso me persegue até os dias de hoje.
Quer uma prova?
O meu carro.
Poxa, eu amo ter carro, amo completamente meu singelo bichinho azul escuro, mas nem dessa vez o meu azar me deixou em paz.
Quer que eu prove?

Tudo começou... no início. Quando o consórcio foi contemplado, eu ainda não tinha 18 anos. Meu pai sofreu um acidente na mesma época e o dele deu perda total e, como estava tendo problemas com o seguro, pegou o meu carro e, com o tempo, acabou se apropriando dele.
Mas tudo bem, eu não me importava.
Quando finalmente o ganhei de fato, dois anos depois, meu pai, que é absolutamente maravilhoso, resolveu colocar ar condicionado pra trazê-lo de Rondônia até aqui.
Mas o ar condicionado não chegava. As férias do meu pai iam acabar e ele não poderia trazer meu carro porque o ar condicionado não tinha chegado.
Eu já havia até me conformado com a minha condição vitalícia de usuária do Salvador Card, quando ele, que é a pessoa mais legal do mundo, resolveu o problema: colocou um ar condicionado de outro carro, de pálio, por que era parecido e dava certo.
Então tá, imagine a felicidade quando finalmente, com dois anos e um mês de atraso meu pai me entregou a chave e eu fui comprar limão do outro lado da cidade, só pra passear mais com o meu novo xodó.
A vida era perfeita como nos filmes da Lindsay Lohan.
Não.
No dia seguinte à sua chegada, o meu carrinho deu pane geral. Pois é, meio dia, Stella Maris, nenhum centímetro de sombra num raio de 100 metros e meu carro não funcionava.
Foi só aí que descobri que ele veio com um problema de fábrica (claro que tinha que vir de problema de fábrica, havia sido comprado pra mim) que não reconhecia o código da chave e como, embora não estivesse em minhas mãos, o carro teoricamente era meu, ninguém se lembrou de consertar.
Então o levamos à Fiat e o prazo do conserto era de (tcharã) trinta dias. Isso porque se tinha que trocar várias peças que viriam de muito longe e (que prático!) uma de cada vez.
Foi o mesmo que dar o doce e tirar da boca da criança.
Mais uma vez eu morri na praia.
É claro que, sendo meu, o carro só foi entregue quarenta e cinco dias depois e não trinta, como haviam falado. Eu o busquei feliz da vida, finalmente encarnando o meu papel de filme da Lindsay Lohan com meu brinquedinho turbinado.
Você já deve estar cansado, mas ainda não acabou.
É claro que isso não duraria muito tempo. Na verdade, menos de 24 horas. Eu o peguei no sábado à tarde e, no domingo à noite, o ar condicionado parou de funcionar.
Se lembra que eu falei que o ar condicionado não havia chegado e foi substituído por um de outro carro? Pois é.
Então, com mais essa dor de cabeça, o levei numa oficina especializada em ar condicionado (como não havia sido colocado na Fiat, deram de ombros pra ele) e disseram que ou foi mal colocado ou, quando consertaram a história da chave, o quebraram abrindo o painel. Como eu não tinha como provar se era uma coisa ou outra, o conserto saiu do meu belo bolso.
130 reais e um dia depois, eu recuperei meu bichinho azul escuro em perfeito estado, mas já não convencida de que essa situação permaneceria por muito tempo.
Nada de fusquinhas e finais felizes pra mim.
Exatamente 18 dias depois, o ar condicionado transformou meu carro numa sauna de novo.
Eu vooooooooooltei à oficina e me disseram que isso já havia sido previsto, que fazia parte de identificar o lugar onde o aparelho estava quebrado.
Tá bom.
Dois dias depois (hoje) eu saio da oficina com a previsão, segundo os técnicos, de que brevemente ele irá parar de funcionar de novo e, finalmente, dessa vez saberão diagnosticar o problema porque colocaram um contraste que vai apontá-lo quando acontecer.
Bala.
Pois bem, eu estava hoje já acostumada com a minha vida de pequeninos infortúnios, me convencendo de que, se tudo desse muito certo, aí é que alguma coisa estaria errada.
E foi nesse momento que, na Avenida ACM, às duas horas da tarde, uma ambulância do SAMU veio, com a sirene ligada, e bateu no meu fundo.

Pois é, está triste por andar de ônibus, a pé, bicicleta?
Não fique, meu bem.
Mas a vida está maravilhosa demais hoje pra eu me importar, afinal, se absolutamente tudo desse muito certo não seria minha vida, seria um filme da Lindsay Lohan.

segunda-feira, abril 19

Instrucciones-ejemplos sobre la forma de tener miedo

En un pueblo de Escocia venden libros con una página en blanco perdida en algún lugar del volumen.
Si un lector desemboca en esa página al dar las tres de la tarde, muere.
En la plaza del Quirinal, en Roma, hay un punto que conocían los iniciados hasta el siglo XIX, y
desde el cual, con luna llena, se ven moverse lentamente las estatuas de los Dióscuros que luchan con sus caballos encabritados
En Amalfí, al terminar la zona costanera, hay un malecón que entra en el mar y la noche. Se oye ladrar a un perro más allá de la última farola.
Un señor está extendiendo pasta dentrífica en el cepillo. De pronto ve, acostada de espaldas, una diminuta imagen de mujer, de coral o quizá de miga de pan pintada.
Al abrir el ropero para sacar una camisa, cae un viejo almanaque que se deshace, se deshoja, cubre la ropa blanca con miles de sucias mariposas de papel.
Se sabe de un viajante de comercio a quien le empezó a doler la muñeca izquierda, justamente debajo del reloj de pulsera. Al arrancarse el reloj, saltó la sangre: la herida mostraba la huella de unos dientes muy finos.
El médico termina de examinarnos y nos tranquiliza. Su voz grave y cordial precede los medicamentos cuya receta escribe ahora, sentado ante su mesa. De cuando en cuando alza la cabeza y sonríe, alentándonos. No es de cuidado, en una semana estaremos bien. Nos arrellanamos en nuestro sillón, felices, y miramos distraídamente en torno. De pronto, en la penumbra debajo de la mesa vemos las piernas del médico. Se ha subido los pantalones hasta los muslos, y tiene medias de mujer.

- Julio Cortázar, Historias de cronopios y de famas

quinta-feira, abril 15

"Em fins dessa semana, sem ter conseguido ter um minuto de sossego, escreveu-lhe a primeira carta. Foi uma missiva convencional, onde lhe contava que o vira sair do hotel, e que teria gostado que ele a visse.
Esperou em vão uma resposta. Ao fim de dois meses, cansada de esperar, mandou-lhe outra carta no mesmo estilo enviesado da anterior, cuja única intenção parecia ser a de censurar-lhe a falta de cortesia. Seis meses depois tinha escrito seis cartas sem resposta, mas conformou-se com a prova de que ele estava a recebê-las.
Dona pela primeira vez do seu destino, Angela Vicario descobriu então que o ódio e o
amor são paixões recíprocas. Quantas mais cartas mandava, mais atiçava as brasas da sua febre, mas também mais aquecia o rancor feliz que sentia contra a mãe. "Revolviam-se-me as tripas só de a ver", disse-me, "mas não a podia ver sem me lembrar dele." A sua vida de casada devolvida continuava a ser tão simples como a de solteira, sempre a bordar à máquina com as amigas, como antes fazia tulipas de pano e pássaros de papel, mas quando a mãe ia deitar-se, ela ficava no quarto a escrever cartas sem futuro até quase de manhã. Tornou-se lúcida, imperiosa, senhora da
sua vontade, e voltou a ser virgem só para ele, e não reconheceu outra autoridade senão a sua, nem mais servidão que a da sua obsessão.
Escreveu uma carta todas as semanas durante meia vida. "às vezes não me lembrava que
dizer", disse-me morta de riso, "mas bastava-me saber que ele as recebia." A princípio foram cartões de cerimônia, depois foram pequenos papéis de amante furtiva, bilhetes perfumados de noiva fugaz, memoriais de negócios, documentos de amor, e por último foram as cartas indignas de uma esposa abandonada que inventava doenças cruéis para obrigá-lo a voltar. Uma noite de bom humor entornou-se-lhe o tinteiro por cima da carta acabada de escrever, e em vez de rasgá-la acrescentou um post-scriptum: "Como prova do meu amor mando-te as minhas lágrimas." De quando em vez, cansada de chorar, zombava da sua própria loucura.
Seis vezes foi substituída a funcionária dos correios, e seis vezes ganhou a sua cumplicidade. Só não lhe passou pela cabeça uma coisa: renunciar. E, no entanto, ele parecia insensível ao seu delírio: era como se escrevesse para ninguém.
Uma madrugada de ventos, pelo ano décimo, acordou-a do sono a certeza de que ele estava nu na sua cama. Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte folhas, na qual soltou sem pudor as verdades amargas que trazia apodrecidas no coração desde a noite funesta. Falou-lhe das cicatrizes eternas que ele deixara no seu corpo, do sal da sua língua, do rastilho de fogo da sua verga africana. Entregou-a à funcionária dos correios, que ia à sexta-feira à tarde bordar com ela para levar-lhe as cartas, e convenceu-se de que aquele desabafo final seria o derradeiro da sua
agonia.
A partir de então já não tinha consciência do que escrevia, nem sabia de ciência certa quem escrevia, mas continuou a escrever sem tréguas durante dezessete anos.
Num meio-dia de Agosto, estava ela a bordar com as amigas, sentiu que alguém chegava à porta. Não precisou de olhar para saber quem era. "Estava gordo e começava a cair-lhe o cabelo, e já usava óculos para ver ao perto", disse-me. "Mas era ele, gaita, era ele!" Assustou-se, porque sabia que a via tão decaída como ela o via, e não acreditava que tivesse dentro de si tanto amor como ela tinha para suportar isso. Vestia uma camisa empapada em suor, como quando o vira pela primeira vez, e trazia a mesma correia e os mesmos alforjes de couro cru com enfeites de prata.
Bayardo San Román deu um passo em frente, sem ligar às outras bordadeiras atônitas, e
pousou os alforjes sobre a máquina de costura.
- Ora bem - disse -, aqui estou eu.
Trazia a mala da roupa para ficar, e outra mala igual com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera. Estavam arrumadas por datas, em maços atados com fitas às cores, e todas por abrir."

- Gabriel García Marquez, Crônica de uma morte anunciada

Acho

que na verdade nunca vou deixar de ser aquela menina de 11 anos que ficou de pé na janela, escondida pelas persianas, vendo o seu carro ir embora.
Tudo o que tenho e faço na minha vida não passa nunca de uma tentativa tosca de tentar deixar de ser. Mas a verdade é que tudo isso me cai bem, me cai melhor do que qualquer outra coisa.

É engraçado

como esse sentimento me cai bem. Engraçado que seja uma das sensações mais familiares que tenho na memória – quando ela vem, eu me sinto quase como que em casa.
Só que numa casa grande demais onde eu não caibo, em lençóis onde me reviro e meus pensamentos maldosos não me deixam dormir.
E, nessas horas, tudo vem e me faz lembrar por que eu sempre me senti assim antes, e também com que me sinta boba por ter acreditado, mesmo que por pouco tempo, que poderia ser diferente. É mais fácil, dadas as qualidades sociais que disponho, ser assim.
Só é mais difícil conseguir dormir ou levantar-me da cama pela manhã, quando tais pensamentos me surpreendem. Mas tudo não passa de uma questão de me acostumar a eles. E, quando me acostumar, eu vou apenas voltar a ser eu mesma.
Tudo o que eu queria agora era voltar a ser numa versão um pouco diferente – uma versão que não se importasse de verdade com tudo isso.
Hilbert: então, sugiro que esqueça tudo isso e vá viver a sua vida.

Harold: Viver minha vida? Estou vivendo. E só quero continuar vivendo.

Hilbert: Falei em viver uma vida completa, por quanto tempo for.
Podia tentar viver alguma aventura... inventar alguma coisa ou terminar de ler Crime e Castigo.
Podia viver só de panquecas, se quisesse.

Harold: Você tem algum problema?
Não quero viver só de panquecas. Eu quero viver.
Quem, em sã consciência, entre panquecas e a vida escolheria a primeira?

Hilbert: Se parar para pensar vai perceber que a resposta está ligada ao tipo de vida sendo vivida e, é claro, à qualidade da panqueca.

- Stranger than fiction.

quarta-feira, abril 14

houve um tempo

em que atribuía os acontecimentos do meu dia às minhas meias - as amarelas me trariam risadas, as verdes chuvas, as azuis dias ruins e as brancas me faziam ganhar algum dinheiro (eu não tinha muitas brancas).
isso, logicamente, passou junto com a minha infância, mas ainda tenho o hábito de atribuir os fatos aos pequenos detalhes em vez de atentar-me a eles como sina, destino ou algo do gênero. pode ser a cor do meu esmalte, o que esqueci em casa hoje, até a marca de desodorante que mudei, qualquer coisa que altere o equilíbrio do meu universo vai fazer outra transbordar em outro lado. pegar um ônibus diferente sempre me fazia um pouco mais feliz, acreditar que as pessoas me confortavam também.
antes a chuva me trazia sorrisos. hoje ela é um amigo conivente, que não permitiria um sol bobo justamente agora.

domingo, abril 11

mas

essa chuva e o seu café da manhã fazem a semana toda valer a pena.